O conceito de cadeia de suprimentos já está consolidado no meio corporativo e acadêmico como o conjunto de empresas que promovem sucessivas agregações de valor ao transformarem matéria-prima em produtos intermediários, que por sua vez serão empregados na elaboração do produto final que chega ao consumidor.
As empresas desta cadeia de suprimentos precisam estar alinhadas e sincronizadas para que o fluxo de produto e serviços aconteça de forma eficiente no que se refere ao emprego dos recursos para esta finalidade. Exemplos de recursos podem ser estoques, ativos produtivos e de distribuição e tempo de processamentos das atividades.
A integração entre os elos da cadeia de suprimentos passou a ser condição-chave para a busca da eficiência. Relacionamento cooperativo, processos de negócios eficazes e elevado compartilhamento de informações são requisitos necessários para que a integração seja realidade.
Tudo isso é fácil de ser dito, mas difícil de ser executado porque a realidade está ficando cada vez mais complexa em decorrência dos desafios da carência de infraestrutura, mais regulamentações governamentais, grande pressão por inovação, aumento da expectativa dos consumidores e redução de talentos para a gestão da cadeia de suprimentos, pressão para redução de custo e reclamos por sustentabilidade.
Além dos aspectos comentados, a expansão da globalização adiciona fatores extras à complexidade da gestão da cadeia de suprimentos. Brasil, Rússia, Índia e China são mercados de rápido crescimento e são considerados de difícil distribuição interna e trocas internacionais devido às limitações da estrutura logística existente nestes países. A expansão da cadeia que, junto com outras cadeias, forma uma rede que se expande, impacta o risco de suprimentos, que aumenta potencialmente devido ao risco adicionado pela expansão global.
Inundações, tsunamis, terremotos e atos de terroristas são exemplos de ocorrências que afetam a cadeia de suprimentos globalizada. Além disso, o crescente aumento da variabilidade nos aspectos regulatórios definidos pelos governos, associado à dificuldade de se prever como estas regulamentações serão promulgadas, traz um tempero a mais na difícil e complexa tarefa de se gerenciar a cadeia de suprimentos globalizada.
Assim, é preciso que se desenvolvam mecanismos que possam ser utilizados para fazer face à complexidade comentada. Isto passa pelo emprego de alternativas e capabilidades que sejam flexíveis, devido à necessidade de adaptação a diferentes situações e circunstâncias geradas pelos fatores de complexidade listados acima.
Integração logística, integração da cadeia de suprimentos, cooperação e colaboração entre os participantes da cadeia de suprimentos, gestão total, gestão de talentos e trabalho conjunto com universidades em busca de novas ideias e talentos são alguns exemplos de mecanismos que podem ser utilizados.
A questão dos talentos é tema central neste artigo, que será dividido em duas partes. Em cada segmento serão discutidos aspectos relacionados com as habilidades que os especialistas encarregados da gestão da cadeia de suprimentos precisam possuir para conviver com a complexidade desenhada nesta introdução.
Pessoas como ponto central da cadeia de suprimentos
Em pesquisa recente conduzida pela Associação Alemã de Logística com diretores de cadeia de suprimento das suas respectivas empresas, onde várias estratégias de gestão foram analisadas, chegou-se à conclusão que a gestão das pessoas que movimentam a cadeia é a estratégia mais importante dentre as alternativas consideradas. A Figura 1 mostra a pontuação média atribuída pelos executivos a cada uma no cenário atual e no cenário daqui a cinco anos.
Figura 1 – Estratégias de gestão da cadeia de suprimentos
Fonte: Adaptado de Handfield, R., 2014
Observa-se que integração entre os elos da cadeia, troca de informações proporcionando visibilidade e planejamento integrado foram estratégias bem pontuadas e que estão relacionadas com o conceito de sincronização e colaboração na cadeia de suprimentos, fundamentais para a redução da complexidade. Ainda assim, estas estratégias aparecem depois da gestão de talentos, demonstrando a importância relativa desta última.
Ainda sob outro ângulo, podemos enxergar a cadeia de suprimentos como uma rede de relacionamentos colaborativos, suportados por tecnologias que proporcionam plataformas de intercâmbio de informações, processos que são flexíveis e adaptáveis em função das regiões onde eles serão executados. E no centro disso tudo vêm os profissionais que gerenciam esta cadeia. Em outras palavras, pessoas formam o núcleo da cadeia.
Habilidades do comprador do futuro
O cenário de complexidade atual e futura da cadeia de suprimentos ressalta uma vez mais o papel estratégico desempenhado pela área de compras/suprimentos, na medida em que esta área contribui significativamente para a redução dos impactos dos fatores que influenciam a mencionada complexidade.
Visando atestar a contribuição da área de Compras, a North Carolina State University realizou recente pesquisa com 168 diretores de Compras/Suprimentos, que identificaram os pontos mais importantes que devem constar na agenda dos executivos do setor para a evolução da área nos próximos dez anos. O resultado está apresentado na Figura 2.
Figura 2 – Aspectos a serem desenvolvidos pela área de Compras
Fonte: Adaptado de Handfield, R., 2014
O conteúdo da Figura 2 mostra a otimização dos relacionamentos com fornecedores como a medida mais indicada pelos entrevistados, e ela está alinhada com a necessidade de colaboração já anteriormente discutida. A segunda medida trata do aumento do uso de tecnologia na área de Compras, porém realizada de forma centralizada. Os demais aspectos apontados pelos entrevistados estão relacionados à gestão da base de fornecedores.
A condução da área de Compras/Suprimentos no caminho da sua evolução e contribuição para a redução da complexidade da cadeia de suprimentos passa necessariamente pelo emprego de profissionais qualificados para conviver com o cenário de complexidade e entregar mais valor para o negócio do que vem acontecendo nos dias atuais.
Assim, a North Carolina State University realizou outra pesquisa, junto a 25 diretores de Compras/Suprimentos de empresas dos segmentos de bens de consumo, financeiro, de máquinas pesadas, saúde, farmacêutico, de energia e telecomunicações. Dentre os aspectos apurados neste levantamento está o conjunto de habilidades que, na visão destes profissionais, o departamento de Compras/Suprimentos deve possuir para viabilizar sua evolução nos próximos dez anos.
As opiniões dos entrevistados convergiram para um conjunto de habilidades desdobradas adiante. A ordem em que elas aparecem não indica a importância relativa de cada uma em relação ao todo. Compreendem habilidades do comprador no papel de especialista em finanças, consultor interno, agente de relacionamento, agente de integração, mitigador de risco, agente de inteligência, protetor do meio ambiente e especialista jurídico.
Comprador como um especialista em finanças
Neste caso, é esperado que os compradores tenham conhecimento dos diferentes segmentos de contabilidade que compreendem a contabilidade de custos, financeira e gerencial. Alguns conceitos que precisam ser dominados são análise do demonstrativo de perdas e danos, impacto do balanço contábil, taxa de juros, taxa de câmbio, variabilidade de preços das matérias-primas com foco especial na oscilação do petróleo e correspondente impacto no orçamento destas variações. Em suma, entender as implicações financeiras destas questões.
Figura 3 – O comprador como expert em finanças
Fonte: Adaptado de Handfield, R., 2014
Ainda nesta mesma linha, o comprador deve se preocupar em participar da análise de gastos (spend analysis) da sua organização, de modo a identificar os gastos realizados nas diferentes categorias e para onde o dinheiro está indo; olhar para o número de fornecedores de cada categoria e questionar a real necessidade desta quantidade; e procurar por indicações que apontem a necessidade de uma ação gerencial para corrigir distorções existentes na dinâmica das atividades da função Compras/Suprimentos.
O trabalho de spend analysis deve facilitar o entendimento do padrão de gastos realizados na organização na janela de tempo estabelecida para análise, bem como a identificação de discrepâncias nos padrões destes gastos como, por exemplo, excessivo preço dos produtos e serviços comprados.
Os profissionais do setor de Compras devem possuir capacidade de alinhar os conceitos de redução de custo, variabilidade dos preços dos produtos e serviços comprados, custos evitados e custo total com os impactos financeiros proporcionados por cada iniciativa, de modo a ser mais bem entendido pelo setor de Finanças da empresa e facilitar a comunicação com este setor.
Isto vai ser importante no processo de motivação de Finanças para validar os savings (economias) obtidos pelo setor de Compras e também para assegurar uma linguagem comum para discussão das estratégias deste último setor. Este nível de engajamento pode ajudar o desenvolvimento e a validação antecipada dos cálculos de baseline e savings.
Comprador como consultor interno
O comprador precisar ser focado em escutar e tentar resolver o problema dos seus clientes internos. Não basta apenas processar requisições ou pedidos de compras que são encaminhados para os compradores. É preciso entender até que ponto a real necessidade do cliente interno será satisfeita.
O comprador deve ser um agente que busca alternativas e soluções para as causas-raízes dos problemas dos seus clientes. Não deve focar somente em redução de preço, mas também em soluções que tragam mais valor aos clientes. A ideia é trabalhar com pessoal de tecnologia de informação, vendas, marketing, recursos humanos, produção e demais segmentos da organização como se fossem seus parceiros, ouvindo e ajudando estes setores em seus problemas.
Figura 4 – O comprador como consultor interno
Fonte: Adaptado de Handfield, R., 2014
Os compradores podem, inclusive, realizar previsões das necessidades dos seus clientes internos baseadas no histórico de gastos realizados por estes clientes, questionar as fontes atuais de suprimentos e trazer outras perspectivas e sugestões que estão emergindo das tendências para consideração dos tomadores de decisão. Este é um tipo de iniciativa que pode trazer valor para os tomadores de decisão, que poderiam não estar cientes das alternativas sugeridas.
Um exemplo característico desta situação é a apresentação, pelo comprador, de uma nova tecnologia desenvolvida pelo fornecedor que pode ser bastante útil para o cliente interno, que não sabia da sua existência.
Comprador como um agente de inteligência
A atividade de inteligência já faz parte da rotina do profissional de Compras, mas o que se pretende aqui é alertar para a necessidade de que essa atividade seja realizada de maneira estruturada e de modo metodológico, de forma a se obter o maior benefício possível deste empreendimento.
Neste segmento, o comprador deve se preocupar em coletar informações de diferentes fontes, que alimentarão as possíveis análises do mercado fornecedor de determinada categoria que se pretende investigar. Isto envolve o desenvolvimento de mecanismos que obtenham dados, governamentais e privados, que permitam a identificação de tendências do mercado fornecedor que possam orientar o processo de compras/suprimentos.
Iniciativas desta natureza possibilitam a definição da estratégia da categoria, gestão de risco de suprimentos, previsão de demanda e custo, acompanhamento das inovações tecnológicas e estabelecimento de modelos preditivos.
Além do setor de Compras ou Suprimentos preparar suas análises para consumo próprio, deve se preocupar em disseminá-las para os demais setores da empresa interessados em conhecer as previsões elaboradas sobre o mercado fornecedor. Isto pode ajudar os clientes internos do departamento de Compras a entenderem os possíveis riscos de suprimentos e facilitar a elaboração dos seus respectivos orçamentos.
Figura 5 – O comprador como agente de inteligência
Fonte: Adaptado de Handfield, R., 2014
A estruturação da capacidade de realização de inteligência do mercado fornecedor passa pela constituição de um grupo de analistas voltados para coleta, síntese e tradução dos dados de mercado em significativas informações para os gestores de categoria e também para a empresa como um todo. A possibilidade de fazer previsões que auxiliem os gestores de categoria é um ponto-chave no desenvolvimento desta iniciativa.
Conclusão
Esta primeira parte do artigo chama a atenção do leitor sobre a complexidade do ambiente futuro da cadeia de suprimentos e inicia a discussão sobre as habilidades que precisam estar presentes no setor de Compras/Suprimentos para que este segmento da organização possa contribuir para a redução da complexidade da cadeia e, adicionalmente, trazer mais valor para empresas compradoras e fornecedoras.
Até aqui, foram tratadas as habilidades de finanças, consultor interno e agente de inteligência. Na próxima parte deste artigo serão abordadas as demais competências a serem exigidas dos compradores nos próximos dez anos.
Referências bibliográficas
Handfield, R., 2014. Strategic Procurement & Supplier Alignement: The Future Faces of Procurement, Presentations materials and notes
KPMG, 2013. FutureBuy: The Future of Procurement, Research Report.
Para referenciar o artigo em sua publicação, utilize:
HANDFIELD, R.; BRAGA, A. O comprador do futuro – Parte 1. Revista Tecnologística, São Paulo, Ano XX, n. 233, p. 104-108, abr. 2015.
Robert Handfield
Professor of Supply Chain Management
North Carolina State University
Ataide R. Braga
Professor e pesquisador
Instituto de Logística e Supply Chain
Tel.: (21) 3445-3000