Sem alarde, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que tenta contornar visões historicamente opostas entre o setor elétrico e a área de logística. De agora em diante, novas usinas hidrelétricas deverão ser construídas sempre junto com eclusas que viabilizem o transporte de cargas pelos rios navegáveis. O projeto, votado anteontem em uma comissão especial, tem caráter terminativo e só precisa ser levado a plenário caso pelo menos 10% dos deputados – 52 parlamentares – assinem um requerimento específico para isso. A tendência é que isso não ocorra e o texto possa seguir diretamente para o Senado.
A obrigação de construir eclusas de forma concomitante com as obras de hidrelétricas sempre foi objeto de avaliações contraditórias dentro do próprio governo. O Ministério dos Transportes nunca se conformou com a construção do sistema de navegação somente após o término das usinas e alega que ele pode custar até 70% menos quando sai do papel junto com as barragens. Para o Ministério de Minas e Energia, a preocupação tem sido essencialmente com o valor do megawatt-hora aos consumidores finais. No setor elétrico, o temor era de que exigências de obras bilionárias na transposição de desníveis gerasse custos adicionais aos vencedores dos leilões de novos projetos e jogasse as tarifas para cima.
Na falta de um meio-termo, prevaleceu a visão da área energética. “As pessoas vivem sem hidrovias, mas não vivem sem luz”, diz um interlocutor do governo em questões de logística. Sem um acordo, usinas de grande porte nos rios Madeira (Santo Antônio e Jirau) e Teles Pires foram licitadas sem a obrigação de eclusas, embora as concessionárias responsáveis pelas hidrelétricas tenham desenvolvido projetos básicos de engenharia que preveem e abrem caminho para elas no futuro. Agora, quando começam a ser preparadas licitações de megausinas no rio Tapajós, o impasse foi destravado.
“Construímos um grande consenso”, afirma o deputado Eduardo Sciarra (PSD-PR), relator do PL 5.335, apresentado originalmente em 2009. “Percebi enorme disposição de todo mundo para conversar. O Ministério de Minas e Energia, o Ministério dos Transportes, o setor produtivo e o setor de construção pesada se deram por satisfeito”, garante Sciarra.
Ele reconhece que oportunidades de agilizar a construção de eclusas em rios importantes, como o Madeira e o Teles Pires, foram perdidas com a demora em tornar o projeto aceitável para todos os envolvidos. Mas frisa que ainda há 100 mil MW de potencial hidrelétrico na região amazônica e aproveitar a navegabilidade de seus rios pode ser decisivo na redução dos custos logísticos. “Principalmente para os produtores de commodities.”
A atuação direta da Casa Civil contornou divergências entre os ministérios e ajudou Sciarra a costurar um texto que foi elogiado pelo equilíbrio. “Ele chegou a uma versão do projeto que é factível”, resume Cláudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, um observatório do setor elétrico ouvido pelo relator ao longo das negociações.
Um dos aspectos que afligia os investidores era justamente se a exigência de construir eclusas aumentaria o custo previsto das hidrelétricas. O texto aprovado define, no entanto, que as despesas com a construção “total ou parcial” de sistemas em vias “potencialmente navegáveis” serão de responsabilidade do Ministério dos Transportes. A redação final também garante “separação e independência” da operação e da manutenção dos sistemas de navegação – ou seja, a concessionária da hidrelétrica não ficará responsável por essa atividade.
A fórmula protege, na leitura de Sales, os consumidores de custos adicionais nas tarifas de energia. O vencedor de leilões de novas usinas terá a obrigação de construir eclusas com recursos próprios apenas em caso de rios que já são usados como hidrovias nos trechos dos futuros projetos. Hidrelétricas de até 50 MW estão dispensadas da obrigação.
Ninguém consegue garantir se, em meio à campanha eleitoral, o Senado terá condições de votar o projeto antes do leilão de São Luiz do Tapajós – esperado para o fim deste ano. Outro ponto de incertezas é que “medidas necessárias” ao cumprimento das novas exigências, segundo o texto aprovado na Câmara dos Deputados, só serão definidas em regulamentação do governo.
Mesmo com essas ressalvas, o ex-secretário de Política Nacional de Transportes e atual diretor-executivo da agência T1, José Augusto Valente, vê a aprovação do PL 5.335 como um avanço. “A necessidade de ampliar o transporte hidroviário, principalmente o escoamento de grãos pela região Norte, é premente. Não dá mais para ficar reclamando das limitações que Santos e Paranaguá não conseguem embarcar toda a soja e todo o milho. É preciso investir urgentemente na expansão das hidrovias”, ressalta Valente.
Fonte: Valor Econômico
Por Daniel Rittner | De Brasília